O artigo abaixo é um presente concedido a nós por Valdir Steuernagel e que foi publicado recentemente no livro Fazendo Teologia de Olho na Criança. Trata-se de uma reflexão sobre a interação de Jesus com um adolescente, sem nome, num momento especial do ministério de Jesus. Valdir imagina a cena a partir do olhar deste menino e nos ajuda a perceber os movimentos de amor de forma muito singela.
“Aqui está um rapaz” Ao chegarmos à nossa terceira narrativa encontramos um cenário bem diferente. Nele encontramos um menino sendo levado a Jesus para que este receba de suas mãos cinco pães de cevada e dois peixinhos (Jo. 6:9). Veja só: Jesus estende as mãos para receber das mãos do menino o que este tinha para lhe dar.
O cenário da narrativa é a multiplicação dos pães, registrado em todos os quatro Evangelhos, ainda que com diferentes detalhes. O que eles têm em comum é uma multidão de gente que vai ficando faminta à medida que o dia vai entardecendo. Eles têm em comum os discípulos buscando articular uma saída adequada para uma situação que eles percebem ser complicada. Uma saída em tempo para as pessoas terem tempo de chegar em suas casas antes do anoitecer e, eventualmente, até conseguirem algo de comer pelo caminho. Enquanto isso Jesus, de forma provocativa, lhes diz, segundo os Evangelhos Sinóticos, que eles deem de comer à multidão, e recebe como resposta que não há dinheiro em caixa para isso e que eles não veem qualquer possibilidade de conseguir algo para tanta gente ali nos arredores.
É neste momento que o Evangelho de João introduz um menino e o faz de forma despretensiosa, quando o discípulo André diz a Jesus: “Aqui está um rapaz com cinco pães de cevada e dois peixinhos, mas o que é isto para tanta gente?” (Jo 6:9). E com isso um novo e inesperado cenário está montado: uma multidão faminta, Jesus e um menino com cinco pães e dois peixes e os discípulos sentindo-se de mãos amarradas.
Como se vê na continuação do relato, Jesus aceita os pães e os peixes das mãos do menino, dá graças por eles e os distribui para que todos possam se alimentar. E todos são alimentados e saciados, com o devido registro de abundante sobra. Um milagre.
O que trazemos à memória, com destaque, é o encontro entre Jesus e o menino. Um encontro singular diante do qual os discípulos estão despreparados e serão surpreendidos. Ao trazer o menino até Jesus, André certamente não imaginava que desse encontro pudesse nascer algo que fosse alimentar toda a multidão. A apresentação do menino foi circunstancial e até parece ter uma nota irônica, pois o que o menino trazia consigo era algo absolutamente insuficiente, como não era difícil concluir. Aliás, a apresentação de algo tão diminuto diante de uma necessidade tão grande poderia ser entendida como um argumento a mais para Jesus despedir logo a multidão. O raciocínio era claro e vale repetilo: tem muita gente aqui e a fome está chegando depressa. Não temos dinheiro para alimentar esse povo todo e neste descampado nem tem onde comprar algo em tanta quantidade para tanta gente. A multidão precisa ser dispensada. E vamos para casa nós também. Ponto final. Não, diz Jesus, estamos apenas no ponto inicial. As pessoas irão para casa, mas antes vamos alimentá-las. Então ele olha para o menino e lhe diz “me mostra o que você trouxe?”.
“O encontro de Jesus com o menino é digno de uma pintura inesquecível. Acanhado, o menino nem estava entendendo direito o que estava acontecendo. Ele sabia do seu lanche e ainda estava se certificando de tê-lo trazido quando “esse homem” veio e lhe disse “o que você tem aí?”. Antes de responder os seus olhos até buscaram a sua mãe para saber o que fazer, mas os seus olhos não a encontraram. Ele havia chegado um pouco mais perto, atraído pela presença e pela voz desse Jesus. Ele nem sabia bem por quê, mas ele gostava de ouvi-lo falar, ainda que fosse um adulto. É que geralmente é chato ouvir os adultos falarem e eles falam muito.Mas com este era diferente. Ele foi chegando tão perto que até o seu lanche foi descoberto por estes discípulos que pareciam estar procurando alguma coisa.
Levado para ainda mais perto de Jesus, ele até ficou com um pouco de medo, mas só até os olhos dos dois se encontrarem: foi um encontro de olhos. Um encontro de paz e de coração tranquilo. Nem demorou para ele perceber que havia metido a mão na bolsa e tirado o seu lanche enquanto Jesus já estendia as mãos. Foi simples. Foi, como se poderia dizer, mágico. Foi até estranho ele não sentir ciúme do seu lanche; e quando se deu conta Jesus já estava levantando o lanche aos céus, como numa oração. Uma oração de agradecimento e isso foi tudo. Então todos comeram. Houve uma certa confusão na hora de distribuir esses pães e peixinhos que pareciam não acabar nunca. Todos comeram. Todos, quer dizer, homens, mulheres e crianças. Eram muitos. E muita coisa sobrou. Ele viu tudo, pois não saiu de perto de Jesus, que vez por outra lhe dava uma olhada. Uma olhada tranquila que tinha um sorriso dentro dela. Quando ele se deu conta já tinha até aconchegado, por um momento, a sua mão agora sem o lanche dentro da mão de Jesus. Nossa!
Pode parecer estranho, mas ao fim daquela “santa muvuca” ele até acabou enfiando na bolsa um pouco da sobra do lanche e o mostrou à sua mãe quando esta o encontrou bem postado e todo faceiro ao lado de Jesus. Ela até fez cara de querer dizer algo como “por onde você andou que eu não estava lhe encontrando?”, mas engoliu em seco quando viu aqueles dois juntos e até engasgou quando Jesus perguntou ao menino “é a sua mãe?” e ele fez que sim com a cabeça. Jesus se voltou para ela e disse: “Eu estava aqui conversando com o seu filho. Gostei da conversa. Menino bonito, esse seu filho. Ele até me deu os seus cinco pães e dois peixinhos. Espero que a senhora não se importe. Mas eu já devolvi”, e um misterioso sorriso transpareceu nos olhos de Jesus para quem quisesse ver. Um sorriso de confiança naquele a quem ele havia agradecido pelos cinco pães e dois peixes.
Então mãe e filho pegaram a estrada, pois já estava ameaçando escurecer e havia um bom trecho para andar. Já no caminho, a mãe segurou a mão do menino, andaram mais um pouco e ela perguntou “o que foi isso, filho?”. Ele ficou quieto por um pouco e respondeu: “Não sei, mãe, não sei. Foi Deus.
É isso. Foi Deus.” Fazer teologia se transforma, fácil, num engodo. Neste, ela está ocupada fazendo contas, calculando os recursos que (não) estão disponíveis e como eles são insuficientes para suprir tantas necessidades. Esta teologia pensa e repensa, mas não vê nenhuma outra alternativa senão dispensar e dispersar a multidão faminta. Assim é, muitas vezes, a nossa teologia: escravizada pela nossa lógica. A lógica dos cálculos e dos recursos; tanto a dos discípulos como a nossa.
Então a teologia recebe um convite. O convite para perceber e discernir o encontro entre Jesus e o menino. Um encontro de olhares, de sintonia e de uma rápida passagem de mãos. A passagem dos cinco pães e dois peixes das mãos do menino para as mãos de Jesus. Neste mover de mãos a teologia da lógica dos adultos se sente perdida, pois não se considera capaz de fazer este movimento nem consegue admitir que “isso” que passa de uma mão à outra possa alimentar uma multidão. Neste momento a teologia precisa decidir se ela vai ficar com a sua “lógica da insuficiência e da dispersão”, quiçá acompanhada da ironia do “pouco que não dá pra tanto”, ou se irá se dispor ao silêncio diante do movimento de mãos: das mãos do menino para as mãos de Jesus.
Essa teologia convidada a se colocar ao lado de Jesus e do menino carece perceber também que essas mãos de Jesus, que recebem o “pouco” das mãos do menino, são mãos em postura de oração. Mãos que sabem para onde se voltar: mãos que se erguem aos céus em divina expressão de gratidão. Mãos em atitude de oração. Mãos que performam um estilo de vida. Em seguida, estas mesmas mãos postas em oração voltam-se em direção ao outro num gestual multiplicador no qual, do pouco, todos se alimentam. Com Jesus é assim: as mãos que recebem são as mãos que oram e as mãos que oram são as mãos que servem ao outro. Este não é um convite fácil para a nossa teologia que faz muitas perguntas, responde com muitas impossibilidades, tem dificuldade de assumir forma de oração e acaba não alimentando ninguém. Na ilógica lógica de Jesus, ele nos convida a que nos tornemos criança, pois só assim iremos perceber como cinco pães e dois peixes alimentam uma multidão.
Depois, é claro, de passarem pelas mãos de Jesus. Mãos que recebem de um menino e alimentam uma multidão. Teologia de olho na criança se faz de olho nas mãos do menino que passa os seus cinco pães e dois peixes para as mãos de Jesus e de olho nas mãos de Jesus que, em gratidão, alimentam uma multidão. Teologia como surpresa divina. aqui você
Venha ouvir o que Valdir Steuernagel tem a dizer sobre “Recebendo o Amor de Deus” no Enconto Nacional de Renas, em São Paulo, nos dias 24 a 26 de agosto. Inscreva-se aqui.