Por Alexandre Gonçalves
No artigo As respostas da igreja evangélica brasileira diante das violências sexuais contra crianças e adolescentes argumentei que, embora variadas, as respostas da igreja evangélica quanto à violência sexual contra crianças e adolescentes cometidas por pastores ou líderes de ministério são, em sua maioria, ineficazes, lentas e revelam uma profunda indiferença pelas vítimas, ao passo que protegem os agressores. Os casos recentes de prisões de pastores evangélicos acusados de abuso sexual infantil atestam essa realidade.
Isso se dá por várias razões. Há a crença de que, por se tratar de um ambiente de convertidos, a igreja estaria “blindada” contra esse tipo de crime. E quando o abuso sexual acontece, muitos líderes, em especial os centralizadores, podem se sentir envergonhados e constrangidos por não terem sido capazes de proteger suas ovelhas, como se a segurança delas fosse de sua exclusiva responsabilidade. A existência ou revelação de uma violência desse tipo na igreja representaria, portanto, o fracasso de seu ministério. O problema é que, não raro, o sentimento de vergonha resulta em silêncio, e os casos de violência não recebem a atenção devida.
Outra razão é que, para além de outras desigualdades presentes nos casos de violência sexual de crianças (idade, gênero, raça, hierarquia, status social, etc), o desequilíbrio de poder que existe entre um pastor (ou alguém com certo nível de influência na igreja) e uma criança é um fator de risco importante. A violência sexual é, antes de qualquer coisa, um abuso das relações de responsabilidade, confiança e poder, incluindo o poder simbólico exercido pela figura pastoral. A violência praticada através do poder simbólico, como observou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, não se baseia, necessariamente, em coerção física direta, mas na imposição de sistemas de significado e estruturas de poder que são internalizadas pelos indivíduos. Quando um pastor diz a uma criança que o tipo de contato ou relação (que sabemos abusivas) que ele está propondo a ela é fruto de revelação divina, que é um modo usado por Deus para operar curas e milagres, ou ainda uma forma de discipulado, é comum que a criança obedeça, pois está envolta em um teia sutil e muitas vezes invisível de dominação. Ela até pode desconfiar que há algo de errado, mas porque aprendeu a se submeter ao representante de Deus na terra, geralmente não se opõe. É preciso muita coragem a uma criança para questionar essa relação de dominação de confrontar os adultos, especialmente quando forem seus líderes espirituais.
Uma terceira razão é que, para responsabilizar um líder ou pessoa renomada na comunidade, é preciso reconhecer, a priori, que a violência aconteceu nas dependências da igreja ou foi perpetrada por algum de seus representantes. Entretanto, porque há o receio de que isso passe uma imagem negativa da igreja perante a sociedade, algumas lideranças preferem ocultar o ocorrido, geralmente silenciando as vítimas e suas famílias e transferindo os agressores para outras comunidades ou paróquias – o que, na prática, só contribui para multiplicar o número de vítimas. Assim, preferem zelar pela reputação da denominação em detrimento do apoio às vítimas e demais adultos de seu entorno, da notificação do abuso às autoridades competentes e do esforço conjunto para que a igreja possa ser um espaço seguro para todos.
Aqui cabe muito bem a advertência de Jesus aos escribas e fariseus que questionavam por quê seus discípulos comiam em dia de sábado: “O sábado [instituição] foi feito por causa do homem [pessoa], e não o homem [pessoa], por causa do sábado [instituição]” (Mc 2.27). Assim como Jesus denunciou uma grave inversão de prioridades em seu tempo – a subordinação da dignidade da pessoa humana ao institucionalismo religioso –, a igreja deveria fazer o mesmo hoje em dia.
Contudo, muitos líderes permanecem corporativistas e privilegiam a reputação pública da instituição, tomando providências somente quando pressionados pela opinião pública, especialmente quando as acusações são divulgadas na mídia e há uma demanda por transparência e responsabilização. Mas é justamente essa pressão pública, fruto de um longo processo de conscientização sobre o problema, que tem contribuído para impulsionar mudanças significativas em muitas igrejas ao redor do mundo.
Há ainda duas outras questões que devem ser consideradas nesta discussão. A primeira delas refere-se à pouca supervisão que pessoas em posição de liderança recebem da igreja. Assim, essas pessoas deixam de prestar contas, em particular no que se refere à sua conduta com os demais membros da igreja. A baixa demanda por transparência e responsabilização é, sem dúvidas, um fator de risco importante. A segunda diz respeito à ausência generalizada de discussão sobre o tema, mesmo que de modo informal e esporádico. Por todos os tabus envolvidos, as igrejas ainda têm muita dificuldade na abordagem de assuntos relacionados à sexualidade, ainda mais quando se trata de violência sexual.
Um caminho possível de mudança passa por tornar a prevenção da violência tema de aprendizado, discussão e aprimoramento permanente. Atualmente, há inúmeras iniciativas e programas que podem ajudar a construir esse caminho, como as metodologias Igreja Segura para Crianças, da Visão Mundial, ou Brincando nos fortalecemos, do Programa Claves, que preparam lideranças para serem agentes de proteção infanto-juvenil, além de mobilizar famílias e comunidades em torno dessa causa.
Dentre as estratégias de prevenção comprovadamente eficazes estão, justamente, o processo intencional e organizado de sensibilização e conscientização e a construção de políticas de proteção infanto-juvenil nas comunidades de fé. Tais iniciativas devem incluir a implementação de diretrizes claras para prevenir, identificar e responder adequadamente a casos de violência sexual, que inclui:
- A elaboração e aplicação de códigos de conduta e treinamentos para líderes e funcionários das igrejas;
- Processos rígidos e imparciais de investigação interna de suspeitos e responsabilização dos agressores por meio de medidas disciplinares;
- Afastamento ou suspensão temporária dos suspeitos de violência sexual contra crianças e adolescentes até o término das investigações;
- Colaboração com as autoridades civis, seja na notificação da violência ou no compartilhamento de informações relevantes ou de evidência sobre
os casos.
- Acolhimento e apoio psicossocial e jurídico às vítimas e, quando necessário, aos seus familiares, para que se fortaleçam e que não sejam coagidos ou constrangidos a mudar seus relatos sobre a violência.
- Campanhas de conscientização e educativas para crianças, adolescentes e famílias, para que sejam capazes de identificar situações de violência e saber como denunciá-las;
- Criação de comitês de proteção infanto-juvenil ou órgãos similares na denominação.
É fundamental observar que iniciativas como essas oferecem um ponto de partida para um programa de proteção mais abrangente. Recomenda-se adaptar o conteúdo com base nas necessidades específicas e no contexto de cada comunidade. Além disso, a participação de especialistas no assunto e de profissionais da área pode aprimorar ainda mais esse processo.
Contudo, criar uma cultura de cuidado e proteção requer, necessariamente, combater uma cultura de dominação e sujeição, questionar os abusos de poder e os discursos que naturalizam as desigualdades, defender a inclusão dos mais vulneráveis e se opor a todas as formas de discriminação e violência. Para isso, é preciso que a igreja veja a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e participantes ativos da comunidade de fé, como queria Jesus (Marcos 9:33-37).
- Alexandre Gonçalves, educador social há 20 anos, presidente e instrutor certificado da Associação Claves Brasil, Co-idealizador e mediador do coletivo Eles & Elos – Espaço de Acolhida, Diálogo e Revisão de Paradigmas sobre Masculinidades –, membro da Igreja da Irmandade, Mestre em Divindade pelo Bethany Theological Seminary.