Por Marcel Lins Camargo
Por ocasião do encontro de afiliadas da Rede Evangélica Nacional de Ação Social, fui convidado para compartilhar uma breve reflexão bíblica que pode no ajudar a pensar sobre nosso contexto e atuação como expressão da igreja de Jesus.
Para esta tarefa escolhi uma cena descrita no evangelho de Marcos. Trata-se de mais um episódio da vida de Jesus. Na realidade, esta cena já nos leva aos seus últimos dias aqui na terra. Estou falando daquela caminhada derradeira de Jesus arrastando a cruz até o monte da crucificação. O relato todo está no capítulo 15 entre os versículos 1 a 23. Escolhi tentar olhar especificamente para três cortes desta cena. Como se eu usasse um zoom, me aproximei de alguns detalhes procurando não perder de vista o quadro todo.
Aqui, temos Jesus percorrendo sua via dolorosa. A famosa “via crucis”, ou “Via Sacra”. E logo no início do seu percurso temos um diálogo. Um dos últimos diálogos de Jesus e os poderosos.
“Você é o rei dos judeus?”, pergunta o político e burocrata Pilatos.
Esta pergunta carrega duas categorias de identidade: uma étnica – já que pretende deslocar Jesus ao “time judeu”; e outra política – aqui Pilatos sugere uma posição de liderança política antagônica aos interesses de Roma, logo, se esta categoria “colasse” em Jesus, este seria facilmente reconhecido como mais um dos vários revolucionários que ousaram afrontar o poderio de Roma. Nenhum desses tinha obtido sucesso até então. E para Pilatos, este nazareno seria mais um petulante que encontraria em breve seu fim na pena máxima romana, reservada aos fora-da-lei e terroristas: a cruz.
A resposta de Jesus à maior autoridade do império naquele momento foi um curto; “Tu o dizes.”. Simples assim. Direto. Seco. Enquanto a pergunta de Pilatos procurava direcionar Jesus para um lugar pequeno, muito menor que aquele ocupado pelo Filho do Deus Trino, Único e Verdadeiro, Jesus desdenha do burocrata romano. Pilatos queria colocar Jesus como líder de uma ganguezinha rebelde de um povinho chato que eram os judeus. Pilatos desejava desmoralizar a Jesus, articulando rótulos irônicos para a ocasião. Afinal, que tipo de rei era este que estava a mercê do juízo de um governador de província que não aparecia na lista dos mais poderosos para Roma?
E aqui eu percebo o primeiro ensino desta caminhada: Jesus desdenha de Pilatos!
O desdém de Jesus está na recusa de se encaixar no rótulo do império. As categorias utilizadas pelo governador, mesmo que ironicamente articuladas, fazem certo sentido no contexto. Os judeus eram um povo “complicado” para Roma, e havia a promessa de um líder de destaque entre os judeus que poderia perturbar os planos de Roma para a região. E, este líder poderia ser eventualmente identificado como um tipo de rei.
A resposta de Jesus ridiculariza toda esta narrativa. O movimento de Jesus não cabe em categorias sociopolíticas do seu tempo. O movimento de Jesus não é restringível, não se encaixa nas nossas caixas. E não cabe nas nossas categorias de hoje também.
Segundo ensino. Segundo corte. Segundo zoom na cena.
“Um homem chamado Simão, de Cirene, passava ali naquele momento, vindo do campo. Os soldados o obrigaram a carregar a cruz. Ele era pai de Alexandre e Rufo”, nos conta Marcos no versículo 21. Aqui nós temos Jesus ensanguentado e ferido pelo espancamento sofrido momentos antes. E de modo aleatório, este africano é inserido na história. Cirene era uma colônia romana no norte da África, atual Líbia. Sabemos pouco sobre ele. Mas temos informações muito interessantes que vieram décadas depois deste episódio. O apóstolo Paulo faz questão de registrar: “Saúdem Rufo, eleito do Senhor, e sua mãe, que tem sido mãe também para mim” (Rm 16:13). Este ‘Rufo” era um dos filhos de Simão!
Quem diria que um desconhecido qualquer, que foi forçado a entrar no caminho da crucificação do Filho de Deus, teria uma família que influenciaria de maneira tão poderosa o maior dos apóstolos. Quem poderia imaginar que a esposa deste africano obscuro, seria uma mãe substituta para Paulo? Onde isto estava no planejamento?
Avançando um pouco mais, quem poderia prever os efeitos e desdobramentos na História? O ministério deste norte-africano, um pioneiro do cristianismo em sua região, ecoa séculos depois, agora na atual Argélia – outra antiga colônia romana – com o surgimento de um cristão, Agostinho de Hipona, que veio a ocupar papel proeminente na história da nossa fé.
Assim, este segundo ensino me leva a refletir que o movimento cristão e nossa atuação em rede enquanto igreja de Jesus, é imprevisível, frágil e sempre contraria muito do esforço dos planejamentos sofisticados que fazemos. O caminho da via crucis me ensina que as consequências do movimento de Jesus são incontroláveis e pode ser que um evento que avaliamos como retrocesso ou incômodo, seja o prenuncio de um grande marco na história do ponto de vista de Deus. Simão que o diga.
Por fim, nosso último corte nesta cena, eu enumero os personagens citados nos versículos de 40 a 43 do capítulo 15 de Marcos. Três mulheres citadas com pelos seus nomes próprios e um homem, líder do conselho do povo, um religioso de respeito. Uma combinação estranha de público. Todos sabemos que a sociedade patriarcal e machista da época desprezava as mulheres. E os religiosos judeus não tinham mais simpatia por elas. E assim, percebo que o movimento da cruz mobiliza os diferentes. Estas mulheres eram marginalizadas diante do contexto cultural e político da época. No entanto, seus nomes foram registrados ao lado de um líder dos religiosos! Só o Cristo crucificado coloca na mesma narrativa, lada a lado, um bando de mulheres insignificantes junto a um homem, membro do tribunal superior dos judeus.
Só um movimento que mantém a humildade do Cristo crucificado e ressurrecto, como este Cristo da via sacra, é capaz de articular ações cooperativas com lados tão opostos de ideologias e posições socioeconômicas e culturais.
Para que Renas ou qualquer outra inciativa prevaleça na história nestes dias desafiadores, já existe um caminho: este seguido pelo Nazareno.