Entre o ECA e as Escrituras: a criança no centro do Reino

Entre o ECA e as Escrituras: a criança no centro do Reino

Por Danielle Dalavechia Chedid Silvestre1

“Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles…”
— Mateus 18.2

Muito antes de qualquer legislação, Jesus nos ensinou que as crianças devem ocupar o centro da vida comunitária. Enquanto a cultura de sua época enxergava as crianças como inexpressivas, sem direitos, sem valor político ou espiritual, o Cristo do Evangelho as coloca no meio — símbolo de escuta, visibilidade e prioridade. Essa postura não era comum. Era subversiva.

E se olharmos com atenção, perceberemos que essa centralidade proposta por Jesus em Mateus 18 ecoa de maneira profunda no que, séculos depois, viria a ser consagrado na Constituição Federal do Brasil, no artigo 277, e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990.

A Bíblia e o Direito: um diálogo possível
Muitas vezes colocamos a Bíblia e os direitos humanos em campos opostos. Há quem veja o ECA com desconfiança, como se fosse uma criação secular que enfraquece a autoridade dos pais ou da igreja. Mas esse é um olhar estreito e equivocado. Quando lemos os Evangelhos com sensibilidade, percebemos que Jesus foi o maior defensor da dignidade da criança. Sua prática antecipou, de forma radical, o espírito das legislações mais modernas.

O Artigo 277 da Constituição declara:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”

Essa ideia de absoluta prioridade não nasceu nos corredores do Congresso. Ela encontra raiz na ética do Reino de Deus. Quando Jesus coloca uma criança no centro (Mt 18.2), ele está dizendo à sua comunidade — e, por consequência, à sociedade — que os pequenos têm um lugar especial na nova ordem do Reino.

Não apenas protegidas, mas protagonistas
Há uma diferença entre proteger uma criança e valorizá-la como sujeito. O cuidado é necessário, mas ele não é suficiente. Proteger sem escutar é tratá-la como objeto passivo. Jesus não fez isso. Ele deu à criança visibilidade e centralidade. Em Marcos 9.37, ele reforça:

“Quem recebe uma criança, em meu nome, a mim me recebe.”

Receber aqui não é apenas “acolher em casa” — é reconhecer, considerar, dignificar. Jesus não instrumentalizou a infância para ensinar os adultos. Ele não usou a criança como “lição”. Ele a tomou como exemplo vivo do Reino. Ele estava dizendo: “Elas têm algo a nos ensinar sobre Deus, sobre a fé, sobre o amor.”

A infância como lugar teológico
Na espiritualidade cristã, muitas vezes priorizamos o que é adulto, maduro, racional, controlado. No entanto, o Reino de Deus, segundo Jesus, pertence aos que são como crianças (Mc 10.14-15). Isso não é romantização da infância, mas valorização de sua potência: a confiança, a abertura ao novo, a dependência não como fraqueza, mas como modo de relação.

Quando o ECA afirma que crianças têm direito à liberdade, à cultura, à opinião, ele não está antecipando uma “rebeldia institucionalizada” — está reconhecendo que infância e adolescência são fases plenas de vida, com direitos próprios, vozes legítimas e lugar na sociedade.

Como organizações cristãs, igrejas, comunidades e famílias, precisamos ir além do cuidado: precisamos criar espaços reais de escuta e participação. O Reino se manifesta onde os pequenos não são apenas protegidos, mas escutados.

De Jesus ao Estatuto: uma mesma direção
O ECA surgiu em 1990, inspirado pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU (1989). Ele marcou uma mudança profunda no modo como o Brasil lida com a infância: da doutrina da “situação irregular” — que via a criança vulnerável como ameaça ou carência — para a doutrina da “proteção integral”, que reconhece a criança como sujeito de direitos.

Curiosamente (ou providencialmente), essa mudança jurídica tem um paralelo no Evangelho: a passagem da tutela passiva para o reconhecimento ativo. Jesus não esperou que os pequenos estivessem em perigo para se preocupar com eles. Ele os colocou no meio, antes de qualquer crise. O seu gesto é preventivo, simbólico e escatológico: aponta para uma nova maneira de organizar a vida em comum.

Seguir Jesus, portanto, é também levar a sério o que o ECA afirma. A prioridade absoluta da infância não é apenas uma cláusula legal — é um imperativo espiritual.

E na prática?
A pergunta que sempre ressurge é: como colocar crianças e adolescentes no meio em nossas comunidades? Eis algumas pistas, inspiradas tanto na Palavra quanto na política pública:

1. Escutar de verdade

Promover espaços onde crianças possam expressar suas opiniões, sentimentos e desejos. A escuta ativa é um dos pilares da participação e da dignidade. Igrejas podem criar assembleias infantis, cultos com fala das crianças, rodas de escuta com adolescentes. Não para que repitam o que os adultos esperam, mas para que expressem sua visão de mundo.

2. Valorizar sua espiritualidade

Crianças também têm sede de Deus. Mais do que conteúdo bíblico, elas precisam de vivências espirituais autênticas: oração, silêncio, perguntas profundas, cuidado com o outro. Elas não apenas aprendem a fé — elas revelam a fé com uma profundidade que frequentemente nos desconcerta.

3. Compartilhar decisões

Mesmo em pequenas escolhas — como o tema de uma atividade, o nome de um projeto ou as regras de convivência — podemos incluir crianças e adolescentes nas decisões. O protagonismo começa nas pequenas coisas. É aí que elas sentem que pertencem.

4. Proteger com dignidade

Proteger não é controlar. É garantir um ambiente onde se possa crescer com liberdade, segurança e amor. Toda forma de violência — inclusive a chamada “violência educativa” — fere o espírito do Evangelho e do ECA. Não se educa pela força. Se forma com vínculo, exemplo e palavra.

5. Reconhecer sua potência transformadora

Crianças e adolescentes são evangelizadoras. São agentes de mudança em suas famílias, escolas, bairros. Elas podem liderar campanhas de solidariedade, ações de justiça, projetos de oração e cuidado com a criação. Quando as envolvemos com intencionalidade, o Reino floresce.

A comunidade como espaço de cumprimento da Lei e do Evangelho

O ECA não é tarefa apenas do Estado. Ele convoca toda a sociedade. E aqui entra o papel crucial das igrejas, ONGs cristãs, famílias de fé. Somos chamados a viver o Evangelho com coerência — e isso inclui defender os direitos das crianças com voz profética.

Muitos têm criticado o ECA sem conhecê-lo. Outros, em nome de uma fé moralista, rejeitam a linguagem dos direitos por considerá-la “mundana”. Mas a pergunta que não quer calar é: o que Jesus faria? Ele deixaria o ECA de lado? Ou reconheceria nele uma semente do Reino?

Ele quebrou paradigmas. Tocou os impuros. Sentou-se com as crianças. Lavou os pés. E disse: “Quem não receber o Reino como uma criança, de maneira nenhuma entrará nele.” (Lc 18.17)

Jesus não esperou um sistema legal para dignificar os pequenos. Ele foi à frente. Ele os colocou no meio. Ele deu o primeiro passo.

Seguir Jesus é escutar os pequenos!

O que a Constituição chama de prioridade absoluta, Jesus chamou de Reino de Deus. Quando acolhemos essa criança no centro, algo muda também em nós. Passamos a ouvir melhor, a decidir com mais amor, a viver com mais leveza e coragem.

Como diz uma bela frase de envio:

“Onde há uma criança escutada, o Reino de Deus se manifesta. Vá e coloque os pequenos no centro.”
— Jesus, pioneiro do Artigo 277.

Que cada comunidade cristã, cada liderança, cada educador e cada família escute esse chamado com reverência e compromisso. Porque seguir Jesus é escutar. É acolher. É colocar no meio. E é aprender com os pequenos como se entra no Reino.

1 Danielle Dalavechia Chedid Silvestre possui especialização em Medidas Socioeducativas, em Psicologia – Teorias Psicanalíticas e em Ciências da Religião. É Bacharel em Comunicação Social e Bacharel em Teologia. Atua como gestora no terceiro setor, coordenando o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes da Fundação Iniciativa. Foi nomeada em 2025 presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente no Estado do Paraná.

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