As crianças na Palestina do Século I eram vítimas de um sistema patriarcal e social em que o poder e a dominação estavam nas mãos dos pais e dos senhores. Jesus encontrou as crianças de sua época numa situação de exclusão. No mundo Greco-romano¹ imperavam o desprezo e a violência sem limites contra crianças recém-nascidas, principalmente as do sexo feminino, assim como também a exploração impiedosa das que sobreviviam².
Além da influência de fatores culturais, a violência maior contra as crianças, todavia, parece ter sido as condições socioeconômicas da maioria da população³.
As crianças eram, na verdade, vítimas da miséria dos seus pais, que por sua vez estava ligada a uma conjuntura política, econômica e religiosa de concentração do poder e da renda nas mãos de uma minoria, conjuntura essa que se desdobrava em exploração do trabalho, endividamento dos agricultores, êxodo rural, escravização, fome, mendicância, doenças, etc.
Movidos pela mentalidade da época, os discípulos de Jesus tentaram impedir que crianças se aproximassem dele, demonstrando com isso uma tendência de valorização dos “grandes” da comunidade. Essa atitude deixa Jesus indignado! Jesus não tolera que crianças sejam impedidas de se aproximar dele (Mc 9.42; Mt 18.6). Esta passagem faz brotar, claramente, um conflito de agenda e de prioridades. Os discípulos não estavam dando às crianças o espaço, atenção e valor que Jesus esperava. Parece que ainda hoje, em muitas “comunidades de discípulos”, esse conflito continua existindo.
Os discípulos tinham outra preocupação: eles estavam planejando ocupar os espaços de poder, discutiam sobre “qual deles seria o maior no Reino” (Mc 9.34). A proteção e o desenvolvimento das crianças como uma prioridade do Reino não era algo que ocupava as suas agendas.4 Pelo contrário, eles as tratavam, como a maioria: com desprezo.
Pois bem, tiveram que ouvir um ensinamento inesperado da parte de Jesus: o maior é aquele que, na comunidade, cede o seu lugar de grande (que está no centro) a quem é pequeno (que está à margem); isto é, o maior é aquele que, como líder, pratica a diaconia, recebendo e acolhendo, em nome de Jesus, essas pequenas grandes vítimas (Mc 9.35-37).
Enquanto os discípulos queriam impedir as crianças de chegarem a Jesus, ele, carinhosamente, pega uma dessas crianças no colo e a abençoa, estabelecendo comunhão com elas, ligando o seu acolhimento com a proximidade a ele e a Deus e mais, prometendo-lhes o Reino de Deus e fazendo depender a entrada dos discípulos no Reino, da sua atitude em relação às crianças.
A atitude diaconal de Jesus ao pegar uma criança no colo – de maneira carinhosa e amorosa – é uma atitude que demonstra valorização e proteção. Esse colo e abraço equivale a um protesto contra tudo o que gerava sofrimento para as crianças. É um colo e abraço profético que denuncia o desprezo e a negligência para com as crianças daquela época. E como qualquer ato profético, não apenas apresenta uma denúncia, mas também aponta para uma nova realidade possível: onde crianças são acolhidas, valorizadas, respeitadas, amadas e restauradas pelo poder do amor, passando a viver uma vida nova, uma vida plena, a vida que Jesus veio oferecer para todas elas!
Penso que neste dia ele nos chamaria e nos diria: “vão e façam como eu fiz”!
Bebeto Araújo.
Diretor nacional da Missão Aliança Noruega e professor de “Missão e Desenvolvimento Comunitário” no CEM. Pastoreou a Igreja da Vinha em Itaperuçu e liderou por 15 anos uma organização, desenvolvendo projetos sociomissionários. É engenheiro, estudou missiologia e especialização em gestão de organizações do terceiro setor. É casado com a Suely e pai do Timóteo, Rebeka e Júlia.
1 O direito romano concedia ao chefe de família o irrestrito poder sobre as crianças, inclusive sobre sua vida e morte. Ele podia enjeitar, vender e matar suas crianças.
2 Uma prática brutal, com registro histórico, contra as crianças enjeitadas é relatada por um contemporâneo de Jesus, Sêneca, o Velho (grande orador romano): “Mendigos profissionais recolhiam crianças abandonadas, mutilivam-nas e depois explorava seu estado lastimável para conseguir esmolas”.
3 Pessoas eram vendidas como pagamento de dívidas pendentes (Mt 18.25).
4 Além do Evangelho, podemos encontrar o princípio da “absoluta prioridade” no Art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.69/90), que deriva do Art. 277 da Constituição da República Federativa do Brasil.